Comunidade dos quilombos e decreto autônomo - 6
O Plenário retomou julgamento de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada contra o Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT (“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”) — v. Informativo 662. Em voto-vista, a Ministra Rosa Weber acompanhou o Ministro Cezar Peluso (relator) quanto à rejeição das preliminares arguidas, por entender que o Decreto 4.887/2003 se credenciaria ao controle concentrado de constitucionalidade por ostentar coeficiente mínimo de normatividade, generalidade e abstração. No mérito, divergiu do relator e julgou improcedente o pedido. Asseverou tratar-se de norma definidora de direito fundamental de grupo étnico-racial minoritário, dotada, portanto, de eficácia plena e aplicação imediata e, assim, exercitável o direito subjetivo nela assegurado, independentemente de integração legislativa. Como norma de eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral, o art. 68 do ADCT estaria apto a produzir todos os seus efeitos no momento em que entrasse em vigor a Constituição, independentemente de norma integrativa infraconstitucional. O enunciado contido no art. 68 do ADCT configuraria efetivo exercício do poder regulamentar da Administração, inserido nos limites estabelecidos pelo art. 84, IV e VI, da CF e, por isso, não teria havido mácula aos postulados da legalidade e da reserva de lei. Esclareceu que os chamados quilombolas, povos tradicionais cuja contribuição histórica à formação cultural plural do Brasil somente fora reconhecida na Constituição de 1988, embora não fossem propriamente nativos, como os povos indígenas, ostentariam, à semelhança desses, traços étnico-culturais distintivos marcados por especial relacionamento sociocultural com a terra ocupada: se tornaram nativos e se incorporaram ao ambiente territorial. Assim, ao mesmo tempo em que, de um lado, não seria possível chegar a um significado de quilombo dotado de rigidez absoluta, de outro, tampouco se poderia afirmar que o conceito vertido no art. 68 do ADCT alcançaria toda e qualquer comunidade rural predominantemente afrodescendente, sem nenhuma vinculação histórica ao uso linguístico desse vocábulo. A autoatribuição como critério de determinação da identidade quilombola não se ressentiria de ilegitimidade perante a ordem constitucional. Destacou que se deveria presumir a boa-fé e que a ninguém se poderia recusar a identidade a si mesmo atribuída e, para a má-fé, o direito administrativo disporia de remédios apropriados.
ADI 3239/DF, rel. Min. Cezar Peluso, 25.3.2015. (ADI-3239)
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A Ministra Rosa Weber reconheceu que, nesse ponto, o Estado brasileiro teria incorporado ao seu direito interno a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, aprovada pelo Decreto Legislativo 143/2002 e ratificada pelo Decreto 5.051/2004, que consagrou a “consciência da própria identidade” como critério para determinar os grupos tradicionais — indígenas ou tribais — aos quais se aplicaria esse instrumento. Para os efeitos do Decreto 4.887/2003, a autodefinição da comunidade como quilombola fora atestada por certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares, nos termos do art. 2°, III, da Lei 7.668/1988. Registrou que, embora houvesse congruências, não seria possível estabelecer sobreposição entre o conceito de consciência da própria identidade, consagrado na Convenção 169 da OIT, e o de autoatribuição/autodefinição, da forma como empregado no Decreto 4.887/2003. Corretamente compreendido e dimensionado, o critério da autoidentificação cumpriria a tarefa de trazer à luz os destinatários do art. 68 do ADCT, e não se prestaria a inventar novos destinatários, de forma a ampliar indevidamente o universo daqueles a quem a norma fora dirigida. Para os fins específicos da incidência desse dispositivo constitucional transitório, além de uma dada comunidade ser qualificada como remanescente de quilombo, também se mostraria necessária a satisfação de um elemento objetivo, empírico: que a reprodução da unidade social, que se afirma originada de um quilombo, estivesse atrelada a uma ocupação continuada do espaço, constatada como ainda existente, em sua organicidade, em 5.10.1988, a caracterizá-la como efetiva atualização histórica das comunidades dos quilombos. De igual forma, o preceito não alcançaria as comunidades desintegradas no momento em que promulgada a Constituição. Frisou que o Decreto 4.887/2003 não cuidaria da apropriação individual pelos integrantes da comunidade, e sim da formalização da propriedade coletiva das terras, atribuída à unidade sociocultural.
ADI 3239/DF, rel. Min. Cezar Peluso, 25.3.2015. (ADI-3239)
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A Ministra Rosa Weber destacou ainda que, para os efeitos específicos — entidade jurídica — que é a comunidade quilombola, o título emitido seria coletivo, pró-indiviso e em nome das associações que legalmente representassem as comunidades quilombolas. Assim, ao determinar que fossem levados em consideração, na medição e na marcação da terra, os critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades quilombolas, longe de submeter o procedimento demarcatório ao arbítrio dos próprios interessados, a norma positivaria o devido processo legal, na garantia de que as comunidades envolvidas tivessem voz e fossem ouvidas. A leitura do Decreto 4.887/2003 não ampararia a conclusão de que a delimitação das terras ocupadas pelos remanescentes seria deixada ao arbítrio exclusivo dos interessados. Concluir nesse sentido corresponderia a verdadeiro “non sequitur”, sequer admitida, como possibilidade hermenêutica legítima. No mais, constatada a situação de fato — ocupação tradicional por remanescentes dos quilombos —, a Constituição conferir-lhes-ia o título de propriedade. Haveria de se buscar na Constituição a solução para a questão procedimental atinente à eventual existência de títulos em nome de terceiros relativos às mesmas terras, já que ela não reputaria nulos ou extintos os títulos eventualmente incidentes sobre as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. A Constituição não invalidaria os títulos de propriedade eventualmente registrados, de modo que a regularização do registro exigiria o necessário procedimento expropriatório. Por outro lado, se já ocorrera o usucapião em favor dos remanescentes das comunidades quilombolas, não haveria razão para instaurar procedimento de desapropriação. Diversamente, se não ocorrera a prescrição aquisitiva — pela intercorrência de alguma causa suspensiva ou interruptiva — haveria a desapropriação. Por prever direito que não se esgotaria na dimensão do direito real de propriedade, e sim direito qualificado pelo caráter de direito cultural fundamental, o art. 68 do ADCT deveria ser interpretado em conjunto com o art. 216, § 1º, da CF, que expressamente autoriza a desapropriação para a proteção do patrimônio cultural brasileiro. Concluiu que não haveria vício de inconstitucionalidade no procedimento de desapropriação previsto no Decreto 4.887/2003. Em seguida, pediu vista dos autos o Ministro Dias Toffoli.
ADI 3239/DF, rel. Min. Cezar Peluso, 25.3.2015. (ADI-3239)
Decisão publicada no Informativo 779 do STF - 2015
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